quinta-feira, 19 de junho de 2025

Um reencontro impossível

 Um reencontro impossível

 

Chovia memória nas pedras daquela rua. Mesmo com o céu limpo, eu sentia cada lembrança escorrer pelos meus passos enquanto caminhava entre as mesas vazias do antigo beco.  

Era sempre à meia-noite que eu aparecia por ali. Os candeeiros douravam os casarões coloniais como se escondessem segredos em suas paredes. As janelas — todas fechadas — pareciam olhos que não queriam mais ver. E eu compreendia. Eu também já vira demais.

Sentei à mesma mesa. Aquela do canto, onde costumávamos dividir silêncios que diziam mais que qualquer conversa. 

Na última noite em que estivemos juntos aqui, ela me disse algo que ecoa até hoje:  

“Algumas ruas não levam a lugar nenhum, apenas a nós mesmos.”  

Depois disso, sumiu. Sem rastros. Sem nome na lista dos desaparecidos. Mas eu sei. Ela ainda está por aqui. Em alguma janela que se recusa a abrir. No reflexo da taça abandonada na mesa ao lado.

Talvez eu esteja preso a esta rua como um eco. Ou talvez... eu nunca tenha saído dela. Porque desde então, tudo o que faço é voltar. Sentar. Esperar.

E toda vez que ouço o leve ranger de uma porta ao fundo… juro que é ela.  

Só que nunca é.  

E mesmo assim, eu fico.

Porque algo em mim acredita — ou finge acreditar — que uma hora será ela.

O vento passa entre os becos como se tivesse nome. Traz cheiro de terra antiga, de promessas esquecidas no tempo. Os prédios respiram nostalgia. O chão guarda as pegadas de quem já partiu. E eu… continuo sendo só um vulto à espera de um reencontro impossível.

Hoje, há três mesas com velas acesas. Ninguém as acendeu. Ninguém veio. Mas a luz está lá, firme, como se soubesse que alguém precisa dela para não enlouquecer.

Às vezes acho que morri ali naquela noite. Que meu corpo é só uma memória mal resolvida, caminhando em círculos por essa rua onde o tempo se recusa a seguir. Talvez esta rua nem exista mais para o mundo. Mas para mim, é tudo que sobrou.

E se amanhã ela abrir a porta, sentar à minha frente e sorrir como antes, talvez o feitiço se quebre.  

Ou talvez não.  

Talvez o amor seja isso: ficar… mesmo depois que tudo foi.


© Euclides da Fonseca

domingo, 8 de junho de 2025

As páginas que me prenderam

 


AS PÁGINAS QUE ME PRENDERAM


Nem as orelhas dos livros na estante me seduziam. Eles estavam todos ali, empilhados como guardiões silenciosos de histórias que eu ainda não conhecia, mas que simplesmente não me chamavam.

Eu andava como um fantasma, sem destino. Olhei o sofá onde me encolhi durante as últimas páginas ainda carregava o contorno do meu corpo e, talvez, os últimos vestígios das emoções que aquela história me deixou. Era como se o mundo real tivesse perdido um pouco da sua cor, e a única coisa que eu queria era voltar.

Voltar para aquele universo onde as palavras tinham cheiro de saudade, onde os personagens eram tão reais quanto as pessoas ao meu redor — ou até mais.

O título ainda brilhava na capa dura, como se zombasse de mim. Como se dissesse: “Tenta.” Mas eu não podia. Não ainda. Cada tentativa de abrir um novo livro era como trair aquele universo. Minhas mãos hesitavam, meu coração recuava, e minha mente voltava para a última frase do último capítulo.

Foi aí que tudo começou a ficar estranho.

Levantei. Caminhei devagar.

O livro.

Aberto na página exata onde terminava. Mas eu juro que o havia deixado fechado, com um marcador. As cortinas balançavam como se alguém tivesse passado por ali. E no ar, havia um cheiro... de papel velho e tinta fresca. Como se o livro estivesse sendo escrito ali, bem diante dos meus olhos.

— Você não terminou comigo, — sussurrou uma voz. Ou talvez tenha sido minha imaginação. Ou a tal da ressaca literária, que agora parecia ter ganhado forma.

Sentei no sofá com o exemplar sobre o colo. O título gravado em dourado parecia mais intenso, quase pulsante.

quinta-feira, 8 de maio de 2025

O toque de lúmen

 




O TOQUE DE LÚMEN 

Eu andava pela rua, uma avenida deserta em meio à cidade que nunca dormia, mas agora parecia esquecida de si mesma. O céu era uma tapeçaria de neon e névoa, onde drones cortavam o ar em rotas previsíveis e as estrelas eram apenas pixels distantes — memórias de um passado que poucos se lembravam.

De repente, um raio rasgou o céu artificial. Não um relâmpago comum, mas uma descarga elétrica intensa, carregada de energia azulada, que caiu exatamente sobre mim.

Não senti dor, pelo menos não imediatamente. Algo estranho tomou conta do meu corpo — uma vibração profunda, uma conexão com algo que parecia estar além do tempo e do espaço. O mundo ao meu redor ficou suspenso, como se o tempo tivesse sido congelado.

Sem saber o que fazer, fiquei parado, olhando para cima, fixando o céu com a intensidade de quem deseja tocar os corpos celestes. Era uma vontade primitiva, ancestral — a necessidade de alcançar algo maior do que eu, de entender o que aquela descarga significava.

Minutos, horas ou talvez apenas segundos passaram. O céu, antes apenas uma ilusão digital, começou a se abrir em fissuras brilhantes, revelando fragmentos de uma realidade oculta. Estrelas verdadeiras, distantes e frias, surgiam entre os pixels, piscando como faróis em uma vastidão desconhecida.

Eu estendi a mão, sentindo a energia pulsar através dos meus dedos. A cidade sumiu, o concreto se dissolveu, e no lugar ficou um espaço vazio, silencioso, onde eu e o céu éramos tudo.

Mas então, a vibração mudou. Uma voz, sussurrante e indecifrável, ecoou dentro da minha mente. Palavras que não compreendi, mas que me chamavam, convidavam.

Eu hesitei.

E, antes que pudesse decidir, a energia do raio me puxou para dentro daquela fissura.

O vazio me engoliu.

Quando acordei, não estava mais na rua. Nem na cidade. Nem no céu. Apenas uma sombra, uma presença entre mundos.

E o silêncio respondeu à minha pergunta, sem nunca revelar a verdade.


© Euclides da Fonseca